terça-feira, 16 de novembro de 2010

idioma do tempo


Muitas vezes era o café, forte e amargo, que me fazia esquecer o mundo lá fora, diante da janela vermelha, entreaberta, sentado à mesa redonda e pequena que havia herdado do bisavô Benedito. Diante do velho cinzeiro cor de prata, cumpria o ritual dos três cigarros em retrospectiva, a imaginar, para cada um tragado, três coisas impossíveis de se acontecer no mundo real. De pés descalços, sentia o prazer do chão de azulejo, que amenizava o calor dos finais de tarde. Gostava de ligar o rádio, sintonizá-lo em alguma estação retrô, e contar com a sorte de um especial de música francesa. Encontrar Piaf, Aznavour e Brel era um dia de sorte. Deleitava-me com aquele sotaque estrangeiro que me fazia ir ao encontro de vidas apenas vividas em meu histórico imaginário. Com diferentes arranjos, mas numa sempre envolvente melodia, algo de fantástico havia naquele galante idioma. Nunca soube descrever bem a sensação. Um gole após o outro, com a xícara pesada que me escapava à força dos dedos, centrava-me nas palavras que estavam por vir. Ouvir e escrever numa língua desconhecidamente conhecida. Era o exercício dos dias de sábado, quando já não havia mais ninguém na pequena rua de treze casas e o silêncio cooperava em tons amenos. Havia duas árvores ao alcance da vista. Eram de um tipo estranho, que todo mês apresentava uma coloração diferente. O rádio pouco durava ligado. Quando as pilhas começavam a fraquejar, imaginava o mar por perto, para ficar com a brisa e as ondas a bater umas nas outras. Aquele mistério infinito, muito além de uma tarde qualquer. Era o tempo que passava. O tempo que sempre passa por aqui. Envelhecer já me parece mesmo ter essas lembranças, imergir nessa confusão de sonho e memória para reafirmar a beleza das coisas. Je suis heureux.

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